Entre a Crítica da Razão Pura (1781) e a Crítica do Juízo (1790), a Crítica da Razão Prática constitui, em termos gerais, uma resposta à interrogação moral «que devo fazer?». Ocupa-se, portanto, da razão na sua aplicação prática, enquanto determinação da vontade de agir, e estabelece a seguinte lei fundamental: «Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio da uma legislação universal».

"Heróis da Paz": Kant esculpido na Estátua equestre


É este o texto de contracapa da obra Crítica da Razão Prática do magnânimo Immanuel Kant, considerado o último grande filósofo dos princípios da era moderna e um dos mais influentes da história da filosofia, da nona edição da tradução de Artur Morão para a Edições 70. Poderia interromper aqui o meu artigo e deixar a leitura da obra à consideração de cada um, assim como a sua interpretação pessoal, nunca unânime. Mas, então, pregariam a minha fama de copista, algo que não pretendo de todo. Assim, dei-me ao obro de reler o prefácio e introdução a esta obra de cariz intemporal, complementando com breves trechos do desenvolvimento e conclusão da mesma.


Seguem-se, então, os aspectos gerais, quiçá algo superficiais quando comparados com a profusa crítica na sua íntegra, deste escrito com génese num dos mais excelsos intelectos com o qual tive a honra de me deparar, Immanuel Kant.

Com o intuito primeiro de demonstrar a existência de uma Razão pura prática (A 3, 4), o autor emprega-se na crítica de toda a faculdade prática da razão pura. Daí, o texto não se intitular Crítica da Razão Pura Prática, como, à partida, poderia parecer, visto que, uma vez almejando pelo objectivo citado, já não é necessário criticar a própria faculdade pura a fim de ver se a razão não se ultrapassa.
Pois, se ela, como razão pura, é realmente prática, prova assim a sua realidade (…) e é vão todo o sofismar contra a possibilidade de ela ser prática.

Se na crítica da razão especulativa, no que concernia à sua dialéctica, surgiam as antinomias, entre as quais a da liberdade, na qual caía quando, na série causal, queria pensar o incondicionado (liberto das leis naturais que pré-estabelecem uma cadeia causal), a da imortalidade, e a da existência de Deus, como sendo indeterminadas pela razão no seu uso especulativo, exactamente por ultrapassarem os limites de uma experiência possível, único campo possível de aplicação da razão especulativa, sem correr o risco de errar, mergulhando assim num abismo de cepticismo em virtude da pretensa impossibilidade daquilo que ela deve pelo menos admitir como pensável (A 3, 4).


Mas, o conceito da liberdade, na medida em que a sua realidade objectiva é demonstrada por uma lei apodíctica da razão prática, é pedra angular de todo o edifício de um sistema da razão pura e todos os outros conceitos (Deus e imortalidade) que, simples ideias, conectam-se com ele e adquirem realidade objectiva. A sua possibilidade é provada pelo facto da liberdade ser efectiva mediante a lei moral. De facto, a liberdade é a condição da lei moral. Já Deus e a imortalidade são condições do objecto necessário de uma vontade determinada por esta lei (o soberano Bem).

Assim, e tendo em conta a divisão kantiana dos graus de crença operada na Crítica da Razão Pura (opinião, fé e ciência), no seu uso prático, a razão eleva os conceitos a priori (que não dependem da experiência) supracitados de mera crença firmada na possibilidade dos mesmos, para uma “quase-ciência”, subjectiva e objectivamente suficiente, por aquisição da sua realidade objectiva, por intermédio da lei moral. Na verdade, a possibilidade, que antes era apenas problema, se torna aqui asserção (A 6, 7, 8), combinando-se com elementos do uso teórico.

Contudo, mediante uma análise completa desta razão, não se visa uma determinação teorética das categorias (vide conceitos puros do entendimento in Crítica da Razão Pura) e nenhuma expansão do conhecimento até ao supra-sensível, algo a que já se opôs Kant na sua obra capital de epistemologia, destituindo a metafísica do seu estatuto de ciência, que se “fortalecera” desde a Antiguidade, através da Idade Média e atingindo o seu auge com o idealismo cartesiano. A razão prática limita-se a conferir realidade objectiva à liberdade, enquanto conceito prático, nunca teórico.

Na presente crítica, Kant chega a dividir o sujeito pensante em númeno (coisa em si), enquanto sujeito da liberdade, e em fenómeno, em vista da natureza, na sua própria consciência empírica.

De facto, a reunião da causalidade, como liberdade, com a causalidade enquanto mecanismo da natureza, estabelecendo-se a primeira pela lei moral e a segunda mediante a lei natural, num só e mesmo sujeito, o homem, é impossível, sem representar este, em relação à primeira, como ser em si mesmo, mas relativamente à segunda como fenómeno, aquele na consciência pura, este na consciência empírica. (nota de rodapé número 2).

Diz ainda Kant, na introdução, que substituir a necessidade subjectiva, isto é, o hábito, à necessidade objectiva, que unicamente tem lugar nos juízos a priori, significa recusar à razão o poder de julgar o objecto (…) de o conhecer assim como ao que ele é próprio; e (…) não dizer que se pode concluir disto para aquilo e que não é a universalidade do assentimento que prova a validade objectiva de um juízo (…), só a validade objectiva constitui o verdadeiro fundamento de um consenso universal necessário.
A crítica à redução do conceito da causalidade a um hábito é, como o próprio afirma mais à frente, a oposição a David Hume.
Na introdução, “Da ideia de uma crítica da razão prática”, Kant opõe, novamente, a razão no seu uso especulativo, como ocupando-se exclusivamente dos objectos, da simples faculdade de conhecer, que com facilidade se transviava para lá dos seus limites, entre objectos inacessíveis ou até conceitos mutuamente contraditórios, à razão no seu uso prático, que se ocupa dos princípios determinantes da vontade, a qual é uma faculdade, ou de produzir objectos correspondentes às representações, ou de se determinar a si mesma à produção dos mesmos, isto é, de determinar a sua causalidade.

Como primeira questão preponderante, trata-se de saber se a razão se basta a si mesma para determinar a vontade ou se ela pode ser um princípio de determinação apenas enquanto empiricamente condicionada. Aqui intervém um conceito de causalidade, o de liberdade, que adquirirá realidade objectiva por convir à vontade humana e impedir a razão empiricamente condicionada de pretender fornecer exclusivamente o princípio de determinação da vontade. Assim, este uso da razão, prático, é imanente, por inerente ao sujeito, em oposição ao empiricamente condicionado, transcendente.

Primando Kant pela sistematicidade filosófica das suas meditações intermináveis em torno das mais variadas problemáticas de então, ordena, novamente (já o havia feito na Crítica da Razão Pura) a crítica em doutrina elementar e metodologia; na doutrina elementar, enquanto primeira parte, uma analítica, como regra de verdade, e uma dialéctica, como exposição e solução da aparência nos juízos da razão prática. Mas, invertendo a ordem seguida a nível da analítica na Crítica da razão pura especulativa, Kant começa pelos princípios para ir aos conceitos.
Aqui termina a primeira parte deste artigo que, devido à extensão do mesmo, decidi por publicar em dias diferentes, por forma a que se tornasse menos enfadonho.


armyofufs

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Blogger Guakjas disse:
Caro armyofufs, hoje arranjei um tempinho (finalmente!) para ler a tua crónica.

Na minha opinião, o texto tem uma linguagem muito elaborada, o que faz com que o texto esteja pouco acessível...Este é um tema que não é fácil de escrever e é por isso mesmo que te elogio! Por teres conseguido escrever algo sobre isto, o que não é fácil ;)
A escrita filosófica é muito difícil por isso mesmo...

Parabéns
;)
Abraços
28 de agosto de 2009 às 14:38